domingo, 4 de abril de 2010

Pedaços de Linguagem

Pedaços de Linguagem

Ana Oliveira

A Linguagem da Alice, do Chapeleiro Maluco e do Coelho Branco

Sendo usualmente retratado como um homem baixo, com uma cartola grande e uma carta na faixa que o envolve, o Chapeleiro surge numa parte em que ele e a Lebre de Março (uma lebre falante) convidam Alice para beber chá. Ele é ainda lembrado por um personagem baseado nele que aparece na Banda Desenhada de Batman chamado Jervis Tetch, mas que adopta o nome de Chapeleiro Louco (Mad Hatter). O livro é uma viagem. Numa linguagem fácil e descontraída, nada é nonsense! Aquelas metáforas dão vazão à criança que sempre existirá dentro de nós, mesmo que nos transformemos numa carcaça ambulante que vai morrer, não quer morrer – resiste.Fica claro mais do que nunca que o melhor escape é sonhar! Quem perder essa capacidade, já era e nem percebeu! Sonhos malucos ou não, que sejam concretos! Viver é brincar com a imaginação, tornar um dia entediante num gozo puro! E é sonhando que a história de Alice começa e é assim que a de todos nós deve continuar.
O livro pode ser interpretado de várias maneiras. Uma das interpretações diz que a história representa a adolescência, com uma entrada súbita e inesperada (a queda na toca do coelho, iniciando a aventura), além das diversas mudanças de tamanho e a confusão que isso causa em Alice, ao ponto de ela dizer que não sabe mais quem é após tantas transformações (o que se identifica com a psicologia adolescente). Também é possível dizer que a obra faz referências a questões de lógica e à matemática, matéria que Carroll leccionava. Um exemplo é o debate que Alice faz com o Chapeleiro e a Lebre de Março sobre relações inversas (o Chapeleiro argumenta que ver o que se come não é o mesmo que comer o que se vê). Carroll também faz referências à língua francesa, como no capítulo 2, onde Alice se comunica com um camundongo em francês, perguntando "Où est ma chatte?" ("onde está a minha gata"), o que o deixa assustado. Além disso, no capítulo 4, um criado do Coelho Branco diz que estava a cavar maçãs, uma provável referência à expressão que significa "batata" em francês, "pomme de terre"; a tradução literal dessa expressão é "maçã da terra".
O nonsense de Carroll continha um elemento extra na formação do texto: a matemática. A obra de Carroll foi constituída através de jogos de linguagem, baseados na Lógica, nos quais os capítulos só terminam quando as proposições se esgotam. Carroll usou os seus conhecimentos matemáticos e lógicos para construir proposições em Alice no País da Maravilhas, sendo muitas vezes o significado particular da frase superado pela forma, sugerindo brincadeiras comuns da época.
A análise do sumário da obra, observando os títulos dos capítulos, permite ver uma colagem de histórias, casos curtos que poderiam existir independentemente, se não fosse a intenção do autor escrever um verdadeiro conto de fadas, tornando a viagem pelo país das maravilhas um sonho de Alice, e fazendo a correspondência ao episódio inicial em que ela lê um livro enfadonho antes de cair no sono. A Lagoa de Lágrimas, Um Chá Maluco e O Campo de Críquet da Rainha são capítulos que remetem o leitor a cenas muito visuais, seja pela descrição nada usual dos acontecimentos ou pelo inusitado dos diálogos. A concordância entre o início e o final aparece como uma prova de coerência na construção da narrativa, pois os leitores não exigem uma lógica total dos acontecimentos dentro do romance, uma vez que se trata do enredo de um sonho, universo onde as coisas mais incomuns são aceites como naturais.
Em toda a história de Alice são encontrados 24 poemas, entre os quais 10 são paródias de poemas e canções inglesas da época de Lewis Carroll. “Os poemas e os versos que Alice recita, e que parecem não ter sentido nenhum, são sátiras aos poemas enfadonhos que as crianças inglesas daquela época tinham que saber de cor.” A posição de Alice, de mãos unidas, ao fazer
récitas indica que era exigido das crianças da época saber as lições de cor.
O dia do chá maluco não é uma data qualquer, é o dia do aniversário de Alice Liddell, 4 de Maio. Ninguém diria a uma menina vitoriana que o seu cabelo estava comprido demais. A observação “o seu cabelo está a precisar de um corte” dita pelo Chapeleiro Louco, na verdade, era uma frase muito ouvida por Carroll, pois este usava os cabelos mais longos do que era costume. A parte na qual a Lebre de Março e o Chapeleiro Louco tentam enfiar o Caxinguelê no bule de chá pode estar relacionada com o facto de que crianças vitorianas costumavam ter ratinhos como bichos de estimação e conservavam-nos dentro de bules cheios de capim ou feno.
A Lebre de Março refere-se ao mês do cio das lebres; o Chapeleiro é louco por causa de uma substância alucinogénea usada na fabricação de chapéus; o Leirão dorme muito por ser um animal que hiberna no inverno e a Falsa Tartaruga refere-se à sopa de falsa tartaruga, que na verdade é feita com carne de vitela.
Durante uma conversa com a duquesa, Alice fica indecisa entre classificar mostarda como animal, mineral ou vegetal. Trata-se de uma referência ao popular jogo de salão vitoriano “animal, vegetal, mineral”, em que os jogadores tentavam adivinhar o que alguém tinha em mente. As primeiras perguntas feitas eram tradicionalmente: É um animal? É um
vegetal? É um mineral? As respostas tinham de ser sim ou não, e o objectivo era adivinhar correctamente em 20 perguntas ou menos. Devido às semelhanças no comprimento dos nomes, e às posições das vogais, consoantes e letras duplas no último nome, acredita-se que Charles tenha se inspirado na formação do nome de Alice Liddell para criar o seu pseudónimo Lewis Carroll. Para fazer uma adaptação não muito distante da obra literária original, apenas a apropriação do tema não é suficiente; é também necessário resgatar o trabalho com a linguagem característica do texto em questão. Quando a época em que tal obra foi escrita e a época em qual a adaptação é lançada diferem muito, essa captação da linguagem se torna algo extremamente trabalhoso, se não impossível. Afinal, a mentalidade e a ideologia dos leitores já vai ser totalmente diferente. E, já que a isso se soma o facto de que os países envolvidos são diferentes, fazer uma adaptação - diga-se, tradução - envolve variações culturais bruscas, dificultando ainda mais o entendimento dos leitores.
Com "Alice no País das Maravilhas", a situação não é muito diferente - na verdade, é até mais difícil, já que os complexos simbolismos de Carroll estão directamente ligados à cultura inglesa do século XIX. Isso acarreta uma perda cultural nas traduções. O livro de Carroll é marcado por jogos entre os sons semelhantes de palavras diferentes e os significados captados pelos personagens, o que gera ruídos na comunicação. Para passar a português trechos contendo esses jogos, as edições brasileiras fizeram a tradução com base na ideia de que a relevância está nessa brincadeira, nos seus sons, e não no significado do signo. Ainda assim, fazer a tradução dessas palavras mostra-se um árduo trabalho. Um dos trechos em que os tradutores devem ter sentido essa dificuldade é o de quando o Gato pergunta a Alice o que havia acontecido ao filho da Duquesa e a menina responde que ele virara um porco (“pig”, em inglês). Algum tempo depois, ele retorna e pergunta se ela havia dito “porco ou corvo”. Na versão inglesa, a palavra de som semelhante a “pig” utilizada é “fig” (que seria "figo" em português). Os signos “corvo” e “figo” nada têm de semelhante, mas foi a solução encontrada pelos tradutores para que o não entendimento do Gato diante da fala da garota e o jogo de palavras de Carroll sejam captados pelos leitores. Há também os casos em que o trecho original remete não só a um jogo de palavras e sons, mas também a um sentido que alude a um significado específico. Na tradução, esse sentido muitas vezes perde-se, pois apenas o jogo foi considerado.
Compare as versões:
Versão em inglês             
‘...I hadn’t begun my tea – not above a week or so – and what with the bread-and-butter getting so thin – and the twinkling of the tea – ’
‘The twinkling of what?’ said the King.
‘It began with the tea,’ the Hatter replied.
‘Off course twinkling begins with a T’

Tradução literal
‘Eu não tinha começado o meu chá – não mais que uma semana – e com o pão com a manteiga ficando finos – e o cintilar do chá –’
‘O cintilar de quê?’ disse o Rei.
‘Começou com o chá,’ replicou o Chapeleiro.
‘É claro que cintilar começa com um T’”

Tradução do Livro ‘e nem tinha começado a tomar o meu chá...há não mais que uma semana, mais ou menos...e o pão com manteiga ficando cada ve mais fino...e o chacoalhar do chá...'
‘O chachoalhar do quê?' disse o Rei.
‘Começou com o chá', respondeu o Chapeleiro.
‘Claro que chacoalhar começa com chá!"

Na tradução feita, a brincadeira com as palavras é mantida, mas não o sentido do trecho. O Chapeleiro, ao afirmar o "cintilar do chá", referia-se à canção mencionada por ele mais cedo, durante a cena do chá maluco. Ele referia-se ao cintilar da "bandeja de chá" ("tea-tray", em inglês), quando foi cortado pelo Rei, que confundiu o som de "tea" com o da a letra "T".

In Jornal Beirão 3/10

Sem comentários: