É (DE)GUSTAR
Os dias contados do porco
Gustave está de volta para falar aos seus fiéis leitores dos dias contados do porco, por estarmos em época de fazer tremer qualquer porco que se preze. E vai lembrar-vos a história da Quinta do Solar que era, por fora, igual a tantas outras de Inglaterra. Mas os animais, ali, sonhavam viver livres da exploração dos homens. Guiados por um porco, o Velho Major, expulsaram de lá o bêbado Sr. Jones, seu proprietário e criaram naquela quinta, que agora se chamava “dos Animais”, um novo regime – o Animalismo. Em que era proibido matar outros animais, andar sobre duas pernas, usar roupas e beber álcool. Não haveria mais propriedade privada, todos os animais seriam iguais, os frutos do trabalho repartidos fraternalmente e as decisões tomadas em assembleias, sem privilégios. Assim foi até que outro porco, Napoleão, assumiu a administração da quinta. Passando logo a mentir, a trair e a ter outros vícios humanos. Já não sendo mais possível “distinguir quem era homem e quem era porco”. Não foi por acaso que Orwell em “A Revolução dos Animais” (“Animal's Farm”), escolheu um porco para liderar os outros animais, nessa revolução. Por lhe sobrar esperteza e malícia. Assim foi desde o princípio dos tempos, quando sobreviviam em florestas de sobreiros e azinheiras. Eram mais ferozes e mais robustos, presas afiadas, visão pouco precisa, audição e olfacto bem desenvolvidos. “Sanglier”, nome francês do javali, vem do latim “singularis”, que significa, precisamente, solitário. Foi dos primeiros animais a serem domesticados pelo homem. Depois da ovelha, do cão e da cabra; mas antes da vaca, do burro, do cavalo e do dromedário. A primeira receita conhecida vem da China (500 a.C.) – porco recheado de tâmaras, envolvido em palha misturada com argila; assado em buraco com brasas, coberto com terra. Os dias contados do porco são marcados por amores e desamores. Até nos textos sagrados. O Levítico (11, 2 a 8) ensinava aos judeus que entre todos os animais da terra podiam comer todo o animal que tivesse a unha fendida e o casco dividido e que ruminasse. Mas não podiam comer aqueles que só ruminavam ou só tivessem a unha fendida... como o porco que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina. Na Grécia, é citado por quase todos os pensadores. Homero refere-se, na Odisseia, a Circe, que transforma os companheiros de Ulisses em porcos. Hércules enfrenta o javali de Erimateia. E Teseu, a porca de Crommyon. Na idade média a carne de maior prestígio, em toda a Europa, era a de porco. Além de saborosa, essa carne definia, nos tempos da inquisição, cristãos (os que a tinham à mesa) e judeus (proibidos desse consumo). Porcos eram engordados com restos de comidas, na “corte” – nome dado a pocilgas situadas junto às casas, sendo a matança desses porcos “exemplo supremo de festa lúdica”. Fazia-se “o cozido da matança” com carnes frescas ou salgadas (rabo, orelha, barbela, focinho), além de enchidos (chouriço, linguiça, cacholeira e farinheira), de porco morto no ano anterior. Do porco tudo se aproveita. Mas o porco vem mudando, com o tempo. O de hoje é “light”. Tem menos gordura, mais músculo e mais carne no lombo (a mais apreciada). Por meio de cruzamentos e mudanças na dieta, perdeu cerca de 30% de sua gordura primitiva, 14% de calorias e 10% de colesterol, julgo saber. Como se não bastasse, o porco também fornece órgãos para serem transplantados no homem, tendo as suas válvulas para implante no coração melhor qualidade e mais aceitação que as de material sintético. Com tantas qualidades, já se vê o quanto de injustiça há na fama que têm os porcos na nossa cultura. Talvez pensando nessa injustiça, em sua defesa veio o estadista inglês Winston Churchill. É dele a observação, generosa, de que “cães olham para si de baixo para cima. Os gatos olham para si de cima para baixo. Só os porcos olham para si olho no olho, como iguais”. Apesar de tantos arroubos, um dos seus pratos preferidos era precisamente porco.
Gustave Gousteau, in Jornal Beirão, 2009
quarta-feira, 7 de abril de 2010
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