Deus apenas criou a água…
Hildérico Coutinho
Uma das vantagens dos jantares enogastronómicos que organizei sob a égide da Galeria de Vinhos e agora, mais amiúde, no Quo Vadis?, é o de descobrir vinhos e castas de um valor inesperado e inacreditável. Foi o que aconteceu recentemente com os vinhos da Gabriela Canossa, uma enóloga já com alguns anos de prática, responsável pelos vinhos de uma mão cheia de produtores e experimentalista por natureza, foi dela a primeira experiência, em Portugal, com colheitas tardias de uvas afectadas por Botrytis, usando a mesma casta que é utilizada em Sauternes e Barzac, por lá conhecida por Semillon e cá por Bual. O resultado foi o de tornar o nome Grandjó um nome respeitado, no que a vinhos de colheitas tardias diz respeito
Mais recentemente, com a Quinta da Revolta, tem experimentado fazer vinhos mono casta, com espécimes que estavam em risco de desaparecer e que graças a esse esforço, estou certo, não mais acontecerá. Falo-vos da Touriga Fêmea e da Tinta Francisca, que durante uns tempos se disse ser a grande Pinot Noir da Borgonha, mas não parece ser esse o caso, até pelo vinho que me foi dado provar. De facto, o belíssimo vinho que tive oportunidade de beber desta casta está longe de ter a cor típica de um Pinot, que mais parece um clarete. Este tem uma cor bem mais intensa, aromas a frutos pretos e que com o passar do tempo se tornam parecidos com o vinagrinho típico do vinho do Porto. Grande vinho e a um grande preço (12,20€ na Galeria de Vinhos) este Tinta Francisca de 2006, que sendo um ano difícil, mais abona a favor da casta. A casta Touriga Brasileira, perdão Touriga Fêmea, que tiveram medo que se pensasse que ela tivesse vindo do outro lado do Atlântico e resolveram rebaptizá-la. As loucuras habituais de quem tem poder e gosta de o demonstrar. Mas, dizia eu, a Touriga Fêmea é de facto muito feminina, pois o vinho que origina é de uma elegância a toda a prova e fantástico para acompanhar um polvo ou um bacalhau.
Neste tempo em que grande parte dos vinhos do Douro e não só são portentosos é de louvar o aparecimento de uma casta que origina vinhos tão elegantes como este de 2007 que bebi.
Outra novidade que também apreciei foi um Riesling, já vos falei desta grande casta alemã, da zona de Pinhel, com vinhas a 800 metros de altitude e que deram origem a um vinho muito engraçado, do melhor que já provei desta casta produzido em Portugal, pois que para atingir o nível dos grandes vinhos alemães ainda terá de crescer um bom bocado. No entanto, para quem está a começar a dar os primeiros passos, só podemos dizer que são muito promissores. De facto este Casas Altas –Riesling 2008 tem um estilo que é muito apreciado na Alemanha, pois apresenta uma grande mineralidade e a acidez é controlada por um açúcar residual que o torna mais fácil para a maioria dos palatos.
Desde já e publicamente aqui vai o meu obrigado aos produtores que vão permitindo à Canossa estas experiências.
Hildérico Coutinho
Detentor do 2º e 3º Nível do WSET (Wine and Spirits Education Trust)
www.galeriadevinhos.com
Quo Vadis? Enoteca e Cozinha Mediterrânica (Matosinhos)
In Jornal Beirão 2010
domingo, 25 de abril de 2010
Cozinha de fusão ou como os portugueses foram os seus precursores
É (de)gustar
Cozinha de fusão ou como os portugueses foram os seus precursores
São vários os países que reclamam para si a “pátria” da chamada cozinha de fusão, designação que nem sempre tem tido a retaguarda cultural que o assunto merece. A grande vantagem da presença dos portugueses no mundo é que a nossa cozinha de fusão ficou por várias gerações, e entrou no património cultural de muitos países.
O termo cozinha de fusão é gratuitamente utilizado. Desde que haja misturas de produtos ou técnicas de regiões, ou países, chamamos literalmente cozinha de fusão. Contudo, a cozinha de fusão não é tanto uma combinação e uma mistura de ingredientes mas especialmente um encontro de culturas que cria pratos naturalmente novos. Esta mistura de culturas manifesta-se de tempos a tempos em criações culinárias novas. Mas o mais importante, e ainda mal inventariado, são as receitas que perduram, que entram na tradição, independentemente da consciência ou contribuição directa para os conceitos de cozinha de fusão. Vários autores sustêm que a cozinha de fusão é essencialmente um dos processos naturais pelos quais as cozinhas evoluem.
A culinária portuguesa, tantas vezes acusada de bruta, pouco fina e fora de moda, tem condições de se apresentar a qualquer tipo de mesa. Alguns chefes de cozinha estrangeiros têm chegado aqui e descoberto a riqueza dos nossos produtos e têm tratado bem o tipo de confecções que ainda valorizam mais os produtos.
Canneloni de açorda de marisco, molho de crustáceos, vieiras laminadas e essência de coentros, carpaccio de novilho com vinagrete de wasabi, salada mizuno e rábano estaladiço, como entradas, ou garoupa assada em escama de batata e chouriço de porco preto, lombo de charolês laminado, pak choi, chutney de manga com redução de soja e sésamo, eis uma ementa de um dos muitos restaurantes que fazem cozinha de fusão no nosso país, um pouco por todo o lado, sobretudo em Lisboa e Porto.
Gustave deixa-vos, esta semana, com duas receitas de cozinha de fusão, uma mais prática mas a outra não menos apetitosa, sobretudo nos dias quentes de Verão que, esperemos, cheguem!
Tostas com cogumelos , queijo e molho de iogurte.
Salteiam-se os cogumelos em azeite com ervas, sal, pimenta e um pouco de alho, enquanto se derrete queijo à escolha, com yogurte natural, sem sabor, e tempera-se com sal e pimenta, a gosto.
Serve-se com tostas, cebolinho e flores comestíveis, amores perfeitos, por exemplo.
Camarões grelhados com salada de abacate e papaia (Leonardo Guzmán)
Ingredientes para 2 pessoas
500 g de camarões tigre médios para grelhar
1 pêra abacate madura
1 papaia média
1 colher de sopa de malaguetas frescas picadas
1 colher de chá de mostarda de Dijon
3 colheres de sopa de azeite
3 colheres de chá de açúcar
3 colheres de sopa de sumo de lima
1 colher de chá de pimenta preta em grão
Preparação
Descasque e corte a papaia e a pêra abacate em fatias compridas. Coloque os restantes ingredientes, à excepção da pimenta preta, numa taça e mexa com uma vara de arames para bater ou use a varinha mágica, até dar consistência ao molho. Reserve uma parte deste preparado para temperar os camarões. Grelhe os camarões com casca, durante três minutos de cada lado. Vá pincelando com o molho que reservou. Coloque os camarões grelhados no prato de servir. Disponha a salada de papaia e abacate no prato e tempere com o restante molho. Decore com pimenta preta em grão.
Gustave Gousteau, in Jornal Beirão, 2009
Cozinha de fusão ou como os portugueses foram os seus precursores
São vários os países que reclamam para si a “pátria” da chamada cozinha de fusão, designação que nem sempre tem tido a retaguarda cultural que o assunto merece. A grande vantagem da presença dos portugueses no mundo é que a nossa cozinha de fusão ficou por várias gerações, e entrou no património cultural de muitos países.
O termo cozinha de fusão é gratuitamente utilizado. Desde que haja misturas de produtos ou técnicas de regiões, ou países, chamamos literalmente cozinha de fusão. Contudo, a cozinha de fusão não é tanto uma combinação e uma mistura de ingredientes mas especialmente um encontro de culturas que cria pratos naturalmente novos. Esta mistura de culturas manifesta-se de tempos a tempos em criações culinárias novas. Mas o mais importante, e ainda mal inventariado, são as receitas que perduram, que entram na tradição, independentemente da consciência ou contribuição directa para os conceitos de cozinha de fusão. Vários autores sustêm que a cozinha de fusão é essencialmente um dos processos naturais pelos quais as cozinhas evoluem.
A culinária portuguesa, tantas vezes acusada de bruta, pouco fina e fora de moda, tem condições de se apresentar a qualquer tipo de mesa. Alguns chefes de cozinha estrangeiros têm chegado aqui e descoberto a riqueza dos nossos produtos e têm tratado bem o tipo de confecções que ainda valorizam mais os produtos.
Canneloni de açorda de marisco, molho de crustáceos, vieiras laminadas e essência de coentros, carpaccio de novilho com vinagrete de wasabi, salada mizuno e rábano estaladiço, como entradas, ou garoupa assada em escama de batata e chouriço de porco preto, lombo de charolês laminado, pak choi, chutney de manga com redução de soja e sésamo, eis uma ementa de um dos muitos restaurantes que fazem cozinha de fusão no nosso país, um pouco por todo o lado, sobretudo em Lisboa e Porto.
Gustave deixa-vos, esta semana, com duas receitas de cozinha de fusão, uma mais prática mas a outra não menos apetitosa, sobretudo nos dias quentes de Verão que, esperemos, cheguem!
Tostas com cogumelos , queijo e molho de iogurte.
Salteiam-se os cogumelos em azeite com ervas, sal, pimenta e um pouco de alho, enquanto se derrete queijo à escolha, com yogurte natural, sem sabor, e tempera-se com sal e pimenta, a gosto.
Serve-se com tostas, cebolinho e flores comestíveis, amores perfeitos, por exemplo.
Camarões grelhados com salada de abacate e papaia (Leonardo Guzmán)
Ingredientes para 2 pessoas
500 g de camarões tigre médios para grelhar
1 pêra abacate madura
1 papaia média
1 colher de sopa de malaguetas frescas picadas
1 colher de chá de mostarda de Dijon
3 colheres de sopa de azeite
3 colheres de chá de açúcar
3 colheres de sopa de sumo de lima
1 colher de chá de pimenta preta em grão
Preparação
Descasque e corte a papaia e a pêra abacate em fatias compridas. Coloque os restantes ingredientes, à excepção da pimenta preta, numa taça e mexa com uma vara de arames para bater ou use a varinha mágica, até dar consistência ao molho. Reserve uma parte deste preparado para temperar os camarões. Grelhe os camarões com casca, durante três minutos de cada lado. Vá pincelando com o molho que reservou. Coloque os camarões grelhados no prato de servir. Disponha a salada de papaia e abacate no prato e tempere com o restante molho. Decore com pimenta preta em grão.
Gustave Gousteau, in Jornal Beirão, 2009
sábado, 17 de abril de 2010
OS PRINCIPAIS SENTIDOS NA PROVA DE VINHOS
Deus apenas criou a água…
Hildérico Coutinho
OS PRINCIPAIS SENTIDOS NA PROVA DE VINHOS
Na prova de vinhos pode considerar-se que intervêm quatro dos cinco sentidos, deixando de fora a audição (alguns, especialmente dotados, poderão utilizá-la para ouvir a explosão das bolhas de espumante!).
Tacto
Desempenha um papel menor na prova de vinhos, mas pode ser utilizada para detectar a textura dos taninos ou das bolhas e a viscosidade do vinho, apesar de na minha modesta opinião, se poder incorporar tudo isto no paladar.
Visão
A observação cuidada do vinho pode ajudar-nos a detectar algum defeito no vinho e a determinar a sua idade. Sujidade no vinho é normalmente sinal de problemas assim como uma cor dourada num vinho branco indica oxidação, no entanto nem sempre esta oxidação é negativa, por ela pode ter sido propositada (ao estagiar em barricas de carvalho) ou pode decorrer da passagem do tempo em garrafa. Nestes casos a evolução pode ser positiva ou negativa e isso só se detecta com o sentido seguinte, o olfacto e confirma-se com o paladar. Se os aromas forem predominantemente ferrosos, então o vinho deverá estar estragado e isso confirma-se com uma boca desequilibrada com um sabor mineral muito intenso.
Um aspecto curioso da oxidação dos vinhos é o percurso em termos cromáticos que os brancos e tintos percorrem confluindo com a idade para praticamente a mesma cor, o “castanho casca de cebola”.
Os termos mais usuais nas classificações das cores dos vinhos são as seguintes:
– BRANCOS
• Incolor
• Verde limão
• Amarelo (palha)
• Dourado
• Âmbar
– TINTOS
• Púrpura (retinto)
• Rubi
• Granada
• Acastanhado (tijolo)
Olfacto
Este é um dos sentidos que nos pode proporcionar mais prazer e no entanto é um dos mais desprezados pelos consumidores. De facto o prazer que um aroma pode proporcionar só é compreensível para alguns e é pena porque poderia sê-lo por todos, bastaria que prestassem atenção ao que os rodeia. Com isso, a memória olfactiva, que numa primeira fase poderá ser quase inexistente vai ficando cada vez mais poderosa. Além do prazer que pode proporcionar, também nos ajuda a detectar eventuais defeitos no vinho.
Paladar
Aqui está o mais viciante de todos os nossos sentidos e felizmente apenas uma pequena percentagem da população não lhe presta a mínima atenção. Todos os outros, em maior ou menor escala sofrem do pecado da gula exactamente pelo grande prazer que nos pode proporcionar.
O que gostaríamos aqui era que passassem a prestar ainda mais atenção a este sentido tentando responder sempre que possível às seguintes questões:
- Estou a gostar? Porquê?
- Que estou a comer? Quais são os ingredientes que compõem este prato ou que outros ingredientes têm sabor parecido?
São questões fundamentais para o exercício de memorização do paladar e se as fizerem vão ver que os quão difíceis são de responder numa primeira fase, mas também o quão aliciante é este desafio.
Ter atenção ao sabor envolve também ter atenção à textura, viscosidade, persistência ou profundidade, algo que aliás é usualmente confundido.
A nossa língua é um fantástico aparelho capaz de percepcionar os sabores básicos que são detectados de uma forma mais intensa em determinadas zonas.
O amargo, por exemplo, é detectado fundamentalmente na parte de traz da língua (zona central). Para não confundir com a acidez basta lembrarmo-nos da água tónica ou do menos conhecido Bitter Kas.
Na parte lateral da língua é detectado com particular incidência a acidez. Uma das técnicas muito utilizadas para perceber a acidez é o de prestar atenção à quantidade de saliva produzida após a ingestão, pois é ela que, graças às suas propriedades alcalinas, vai neutralizar o excesso de acidez no nosso estômago. Diz-se aliás que se não salivássemos o nosso estômago romperia com os ácidos que ali temos e produzimos.
O sal é detectado na frente da língua, mas ligeiramente lateral e também é bem perceptível na parte central da língua.
Na ponta da língua está o detector principal do doce e não convém pois escaldá-la.
Hildérico Coutinho
Detentor do 2º e 3º Nível do WSET (Wine and Spirits Education Trust)
www.galeriadevinhos.com
Quo Vadis? Enoteca e Cozinha Mediterrânica (Matosinhos)
In Jornal Beirão, 16 de Abril de 2010
Hildérico Coutinho
OS PRINCIPAIS SENTIDOS NA PROVA DE VINHOS
Na prova de vinhos pode considerar-se que intervêm quatro dos cinco sentidos, deixando de fora a audição (alguns, especialmente dotados, poderão utilizá-la para ouvir a explosão das bolhas de espumante!).
Tacto
Desempenha um papel menor na prova de vinhos, mas pode ser utilizada para detectar a textura dos taninos ou das bolhas e a viscosidade do vinho, apesar de na minha modesta opinião, se poder incorporar tudo isto no paladar.
Visão
A observação cuidada do vinho pode ajudar-nos a detectar algum defeito no vinho e a determinar a sua idade. Sujidade no vinho é normalmente sinal de problemas assim como uma cor dourada num vinho branco indica oxidação, no entanto nem sempre esta oxidação é negativa, por ela pode ter sido propositada (ao estagiar em barricas de carvalho) ou pode decorrer da passagem do tempo em garrafa. Nestes casos a evolução pode ser positiva ou negativa e isso só se detecta com o sentido seguinte, o olfacto e confirma-se com o paladar. Se os aromas forem predominantemente ferrosos, então o vinho deverá estar estragado e isso confirma-se com uma boca desequilibrada com um sabor mineral muito intenso.
Um aspecto curioso da oxidação dos vinhos é o percurso em termos cromáticos que os brancos e tintos percorrem confluindo com a idade para praticamente a mesma cor, o “castanho casca de cebola”.
Os termos mais usuais nas classificações das cores dos vinhos são as seguintes:
– BRANCOS
• Incolor
• Verde limão
• Amarelo (palha)
• Dourado
• Âmbar
– TINTOS
• Púrpura (retinto)
• Rubi
• Granada
• Acastanhado (tijolo)
Olfacto
Este é um dos sentidos que nos pode proporcionar mais prazer e no entanto é um dos mais desprezados pelos consumidores. De facto o prazer que um aroma pode proporcionar só é compreensível para alguns e é pena porque poderia sê-lo por todos, bastaria que prestassem atenção ao que os rodeia. Com isso, a memória olfactiva, que numa primeira fase poderá ser quase inexistente vai ficando cada vez mais poderosa. Além do prazer que pode proporcionar, também nos ajuda a detectar eventuais defeitos no vinho.
Paladar
Aqui está o mais viciante de todos os nossos sentidos e felizmente apenas uma pequena percentagem da população não lhe presta a mínima atenção. Todos os outros, em maior ou menor escala sofrem do pecado da gula exactamente pelo grande prazer que nos pode proporcionar.
O que gostaríamos aqui era que passassem a prestar ainda mais atenção a este sentido tentando responder sempre que possível às seguintes questões:
- Estou a gostar? Porquê?
- Que estou a comer? Quais são os ingredientes que compõem este prato ou que outros ingredientes têm sabor parecido?
São questões fundamentais para o exercício de memorização do paladar e se as fizerem vão ver que os quão difíceis são de responder numa primeira fase, mas também o quão aliciante é este desafio.
Ter atenção ao sabor envolve também ter atenção à textura, viscosidade, persistência ou profundidade, algo que aliás é usualmente confundido.
A nossa língua é um fantástico aparelho capaz de percepcionar os sabores básicos que são detectados de uma forma mais intensa em determinadas zonas.
O amargo, por exemplo, é detectado fundamentalmente na parte de traz da língua (zona central). Para não confundir com a acidez basta lembrarmo-nos da água tónica ou do menos conhecido Bitter Kas.
Na parte lateral da língua é detectado com particular incidência a acidez. Uma das técnicas muito utilizadas para perceber a acidez é o de prestar atenção à quantidade de saliva produzida após a ingestão, pois é ela que, graças às suas propriedades alcalinas, vai neutralizar o excesso de acidez no nosso estômago. Diz-se aliás que se não salivássemos o nosso estômago romperia com os ácidos que ali temos e produzimos.
O sal é detectado na frente da língua, mas ligeiramente lateral e também é bem perceptível na parte central da língua.
Na ponta da língua está o detector principal do doce e não convém pois escaldá-la.
Hildérico Coutinho
Detentor do 2º e 3º Nível do WSET (Wine and Spirits Education Trust)
www.galeriadevinhos.com
Quo Vadis? Enoteca e Cozinha Mediterrânica (Matosinhos)
In Jornal Beirão, 16 de Abril de 2010
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Premier jour de classe à Ville St-Laurent...*
Premier jour de classe à Ville St-Laurent...*
1er septembre... le directeur fait l'appel des élèves.
-"Mustapha El Ekhzeri"
-"Présent"
-"Ahmed El Cabul"
-"Présent"
-"Kadir Sel Ohlmi"
-"Présent"
-"Mohammed Endahoui"
-"Présent"
-"Ala In Ben Oit"
Silence.
-"Ala In Ben Oit"
La classe demeure silencieuse.
Pour la dernière fois: "Ala In Ben Oit".
Soudain un garçon dans la dernière rangée se lève et dit au directeur:
C'est moi, mais ça se prononce:
Alain Benoit
1er septembre... le directeur fait l'appel des élèves.
-"Mustapha El Ekhzeri"
-"Présent"
-"Ahmed El Cabul"
-"Présent"
-"Kadir Sel Ohlmi"
-"Présent"
-"Mohammed Endahoui"
-"Présent"
-"Ala In Ben Oit"
Silence.
-"Ala In Ben Oit"
La classe demeure silencieuse.
Pour la dernière fois: "Ala In Ben Oit".
Soudain un garçon dans la dernière rangée se lève et dit au directeur:
C'est moi, mais ça se prononce:
Alain Benoit
Deus apenas criou a água…
Deus apenas criou a água…
Hildérico Coutinho
Era minha intenção falar-vos, nesta crónica, da prova cega para a escolha dos vinhos que foram escolhidos para o Top10 da Wine. No entanto, tal não vai se possível por não ter na minha posse as notas que dei aos vinhos em prova e era essa a abordagem que pretendia. Assim, ficará para a próxima, já ia a dizer, se Deus quiser, mas como ateu que sou, não posso falar disso.
Falarei então de duas provas belíssimas e didácticas em que tive o prazer de participar: a prova vertical dos vinhos moscatéis de Setúbal da José Maria da Fonseca e a prova comemorativa dos 100 anos da República.
Ambas foram prazerosas e da primeira destaco, até pelo preço convidativo que apresentam, os moscatéis roxos com cerca de 10 anos de idade, que apresentam uma complexidade e qualidade absolutamente ímpares. Da segunda prova, em que provámos, três vinhos de 1910 e um de 1908, um Porto, um moscatel e dois da Madeira, devo dizer, que parti para ela condicionado. Esperava que os vinhos da Madeira “atropelassem” os concorrentes. De facto, os vinhos da Madeira ainda poderiam ter ficado em casco, onde de facto envelhecem, por mais alguns anos, tal a juventude que apresentaram. No entanto, como vós bem sabeis, a juventude tem raça, mas nem sempre qualidade e quase nunca complexidade. O vinho do Porto estava cansado, o que não me espantou por estarmos a falar de um vintage. Surpreendente foi a qualidade do moscatel apresentado, com uma complexidade ao nível dos melhores néctares que bebi, longe do estilo cansado que por vezes tive a oportunidade de provar e com a nota, digna de registo, de ter sido engarrafado após 75 anos em barricas. Absolutamente fantástico e os senhores da José Maria da Fonseca estão de parabéns.
Mais uma vez, se já não me tivesse acontecido por demasiadas vezes ainda poderia tomar por lição, mas a verdade é que não podemos ser preconceituosos em relação ao vinho, como aliás, não o devemos ser em relação a nada na nossa vida.
Quero pois exortá-los (gosto desta expressão) a viverem e a beberem de forma a “darem vivas à Cristina”, cujo significado ficará para uma próxima oportunidade.
Hildérico Coutinho
Detentor do 2º e 3º Nível do WSET (Wine and Spirits Education Trust)
www.galeriadevinhos.com
Quo Vadis? Enoteca e Cozinha Mediterrânica (Matosinhos)
In Jornal Beirão, 2010
Hildérico Coutinho
Era minha intenção falar-vos, nesta crónica, da prova cega para a escolha dos vinhos que foram escolhidos para o Top10 da Wine. No entanto, tal não vai se possível por não ter na minha posse as notas que dei aos vinhos em prova e era essa a abordagem que pretendia. Assim, ficará para a próxima, já ia a dizer, se Deus quiser, mas como ateu que sou, não posso falar disso.
Falarei então de duas provas belíssimas e didácticas em que tive o prazer de participar: a prova vertical dos vinhos moscatéis de Setúbal da José Maria da Fonseca e a prova comemorativa dos 100 anos da República.
Ambas foram prazerosas e da primeira destaco, até pelo preço convidativo que apresentam, os moscatéis roxos com cerca de 10 anos de idade, que apresentam uma complexidade e qualidade absolutamente ímpares. Da segunda prova, em que provámos, três vinhos de 1910 e um de 1908, um Porto, um moscatel e dois da Madeira, devo dizer, que parti para ela condicionado. Esperava que os vinhos da Madeira “atropelassem” os concorrentes. De facto, os vinhos da Madeira ainda poderiam ter ficado em casco, onde de facto envelhecem, por mais alguns anos, tal a juventude que apresentaram. No entanto, como vós bem sabeis, a juventude tem raça, mas nem sempre qualidade e quase nunca complexidade. O vinho do Porto estava cansado, o que não me espantou por estarmos a falar de um vintage. Surpreendente foi a qualidade do moscatel apresentado, com uma complexidade ao nível dos melhores néctares que bebi, longe do estilo cansado que por vezes tive a oportunidade de provar e com a nota, digna de registo, de ter sido engarrafado após 75 anos em barricas. Absolutamente fantástico e os senhores da José Maria da Fonseca estão de parabéns.
Mais uma vez, se já não me tivesse acontecido por demasiadas vezes ainda poderia tomar por lição, mas a verdade é que não podemos ser preconceituosos em relação ao vinho, como aliás, não o devemos ser em relação a nada na nossa vida.
Quero pois exortá-los (gosto desta expressão) a viverem e a beberem de forma a “darem vivas à Cristina”, cujo significado ficará para uma próxima oportunidade.
Hildérico Coutinho
Detentor do 2º e 3º Nível do WSET (Wine and Spirits Education Trust)
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Quo Vadis? Enoteca e Cozinha Mediterrânica (Matosinhos)
In Jornal Beirão, 2010
A rã solitária, de António Torrado
A rã solitária
Era uma vez uma rã que vivia num charco. Vivia sozinha. O charco também era pequeno.
Sentia a falta de outras rãs, para lhe fazerem companhia e coaxarem ao despique nas noites de Lua cheia. Sentia que, se outras rãs vivessem com ela, podia nadar de bruços com mais folgança, velocidade, estilo… Sentia que os saltos que dava para dentro de água, à falta de espectadores, nem jeito nem graça tinham.
Enfim, a rã deste pequeno charco sentia-se muito só.
Desamparada. Infeliz.
Perguntem, se fazem favor, porque é que a rã se não mudava para charco mais amplo e povoado?
Porque temia que tão perto não houvesse outro. Ora, como devem saber, as rãs detestam perder tempo a saltar em seco. A água faz-lhes falta. Sem ela, perdem o luzidio da pele e a força de vida. Não sabiam?
Um dia, começou a chover que nunca mais parava. Dia e noite. Noite e dia.
Os campos ficaram alagados. Os rios sobraram do leito.
Pequenos charcos, afastados uns dos outros, juntaram-se num enorme lago.
Foi uma inundação terrível. Veio nos jornais e a televisão deu notícia. Casas de que só o telhado se via.
Animais afogados. Gente a ser salva em barcaças por bombeiros. Uma desgraça.
Mas como esta história pertence à rã, esta história tem um fim feliz. A rã, passada a tempestade, encontrou companhia. Dezenas de rãs coaxam agora, em coro, glorificando a chuva, a abundância das águas, o abraço do lago imenso que as juntou.
Aqui entre nós e em segredo vos peço que nunca contem esta história a pessoas que tenham sofrido os efeitos trágicos de uma inundação. Não iam gostar.
António Torrado
www.historiadodia.pt
Era uma vez uma rã que vivia num charco. Vivia sozinha. O charco também era pequeno.
Sentia a falta de outras rãs, para lhe fazerem companhia e coaxarem ao despique nas noites de Lua cheia. Sentia que, se outras rãs vivessem com ela, podia nadar de bruços com mais folgança, velocidade, estilo… Sentia que os saltos que dava para dentro de água, à falta de espectadores, nem jeito nem graça tinham.
Enfim, a rã deste pequeno charco sentia-se muito só.
Desamparada. Infeliz.
Perguntem, se fazem favor, porque é que a rã se não mudava para charco mais amplo e povoado?
Porque temia que tão perto não houvesse outro. Ora, como devem saber, as rãs detestam perder tempo a saltar em seco. A água faz-lhes falta. Sem ela, perdem o luzidio da pele e a força de vida. Não sabiam?
Um dia, começou a chover que nunca mais parava. Dia e noite. Noite e dia.
Os campos ficaram alagados. Os rios sobraram do leito.
Pequenos charcos, afastados uns dos outros, juntaram-se num enorme lago.
Foi uma inundação terrível. Veio nos jornais e a televisão deu notícia. Casas de que só o telhado se via.
Animais afogados. Gente a ser salva em barcaças por bombeiros. Uma desgraça.
Mas como esta história pertence à rã, esta história tem um fim feliz. A rã, passada a tempestade, encontrou companhia. Dezenas de rãs coaxam agora, em coro, glorificando a chuva, a abundância das águas, o abraço do lago imenso que as juntou.
Aqui entre nós e em segredo vos peço que nunca contem esta história a pessoas que tenham sofrido os efeitos trágicos de uma inundação. Não iam gostar.
António Torrado
www.historiadodia.pt
domingo, 11 de abril de 2010
Paulo Medeiros: "Elevem-se as Gentes que amam a sua Cultura".
O artista plástico Paulo Medeiros publica no blog um trabalho seu com o título: "Elevem-se as Gentes que amam a sua Cultura".
Antígona, de Sófocles
O trágico destino do parricida e incestuoso Édipo, não foi suficiente para diminuir a ira dos deuses. A maldição pelo seu crime se estende a toda sua descendência. Seus filhos, Polinices e Etéocles, morrem lutando às portas de Tebas, um pela espada do outro. Polinices se aliou aos guerreiros de Argos para derrubar a tirania de Creonte, seu tio, defendido por seu irmão Etéocles. Creonte, para evitar novas revoltas em seu reino, concede a Etéocles as honras da sepultura e ordena que Polinices permaneça insepulto, sem homenagens fúnebres e entregue aos abutres. Decreto que deixa Antígona e Ismênia, irmãs dos mortos, em delicada situação: seguir a lei dos homens (decretada por Creonte) ou a lei divina (as mulheres da família devem honrar seus mortos)? Antígona escolheu seguir a lei divina. Convidou Ismênia para juntas cumprirem os funerais do irmão. Ismênia, com receio da ira de Creonte, repreende a irmã e decide não tomar parte nessa loucura. Antígona faz tudo sozinha. Logo cedo se espalha a noticia de que o decreto real fora violado e não tardou para que Antígona fosse descoberta e condenada a ser emparedada viva (para que o rei não se sujasse com esse sangue derramado). Seu crime: a piedade pelo irmão insepulto. Creonte, por atentar contra as leis divinas (leis-não-escritas), fora advertido pelo cego adivinho Tirésias, que sofreria a ira dos deuses. Sua descendência estaria condenada à desgraça. Hêmon, filho de Creonte é noivo de Antígona e também tenta mudar a idéia do pai de punir a noiva. Creonte não o escuta. Hêmon decide morrer com a amada e foge do pai dizendo que nunca mais quer rever seu rosto. Antígona foi encerrada em uma caverna com uma porção de comida que dê para um dia, para que a cidade não fosse maculada pelo sacrilégio. O velho Tirésias volta a falar com Creonte em seu palácio a respeito do castigo que os deuses reservam para o rei se este não voltasse atrás em seu injusto decreto. Consegue convencê-lo e Creonte vai com suas próprias mãos sepultar Polinices e libertar Antígona. Após realizar os rituais fúnebres do cadáver já devorado por cães, dirigindo-se para a gruta onde está Antígona ouve um grito alucinante. Corre para dentro do tumulo e encontra Hêmon segurando o corpo de Antígona que se enforcou com o próprio cinto. Ao ver o pai, Hêmon o responsabiliza pela morte de sua amada e saca sua espada contra ele. Creonte escapa do golpe, mas Hêmon vergando a espada contra si próprio, crava-a no peito com furor e morre ao lado de sua noiva. Creonte desolado toma o filho nos braços e corre para seu palácio. Mas, a noticia do acontecimento corre mais rápido e quando ele chega Eurídice, sua esposa, tão logo soube da morte de Hêmon, desferiu um profundo golpe com um ferro pontiagudo no fígado e já sem vida recebeu Creonte no palácio. A rainha morreu lançando sobre o marido a culpa pela morte de seu filho. O rei amaldiçoado e infeliz já não quer mais viver e aguarda com sua culpa a vinda de outra morte pelos seus desejos: a sua própria.
quinta-feira, 8 de abril de 2010
quarta-feira, 7 de abril de 2010
É (de)gustar
É (DE)GUSTAR
Os dias contados do porco
Gustave está de volta para falar aos seus fiéis leitores dos dias contados do porco, por estarmos em época de fazer tremer qualquer porco que se preze. E vai lembrar-vos a história da Quinta do Solar que era, por fora, igual a tantas outras de Inglaterra. Mas os animais, ali, sonhavam viver livres da exploração dos homens. Guiados por um porco, o Velho Major, expulsaram de lá o bêbado Sr. Jones, seu proprietário e criaram naquela quinta, que agora se chamava “dos Animais”, um novo regime – o Animalismo. Em que era proibido matar outros animais, andar sobre duas pernas, usar roupas e beber álcool. Não haveria mais propriedade privada, todos os animais seriam iguais, os frutos do trabalho repartidos fraternalmente e as decisões tomadas em assembleias, sem privilégios. Assim foi até que outro porco, Napoleão, assumiu a administração da quinta. Passando logo a mentir, a trair e a ter outros vícios humanos. Já não sendo mais possível “distinguir quem era homem e quem era porco”. Não foi por acaso que Orwell em “A Revolução dos Animais” (“Animal's Farm”), escolheu um porco para liderar os outros animais, nessa revolução. Por lhe sobrar esperteza e malícia. Assim foi desde o princípio dos tempos, quando sobreviviam em florestas de sobreiros e azinheiras. Eram mais ferozes e mais robustos, presas afiadas, visão pouco precisa, audição e olfacto bem desenvolvidos. “Sanglier”, nome francês do javali, vem do latim “singularis”, que significa, precisamente, solitário. Foi dos primeiros animais a serem domesticados pelo homem. Depois da ovelha, do cão e da cabra; mas antes da vaca, do burro, do cavalo e do dromedário. A primeira receita conhecida vem da China (500 a.C.) – porco recheado de tâmaras, envolvido em palha misturada com argila; assado em buraco com brasas, coberto com terra. Os dias contados do porco são marcados por amores e desamores. Até nos textos sagrados. O Levítico (11, 2 a 8) ensinava aos judeus que entre todos os animais da terra podiam comer todo o animal que tivesse a unha fendida e o casco dividido e que ruminasse. Mas não podiam comer aqueles que só ruminavam ou só tivessem a unha fendida... como o porco que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina. Na Grécia, é citado por quase todos os pensadores. Homero refere-se, na Odisseia, a Circe, que transforma os companheiros de Ulisses em porcos. Hércules enfrenta o javali de Erimateia. E Teseu, a porca de Crommyon. Na idade média a carne de maior prestígio, em toda a Europa, era a de porco. Além de saborosa, essa carne definia, nos tempos da inquisição, cristãos (os que a tinham à mesa) e judeus (proibidos desse consumo). Porcos eram engordados com restos de comidas, na “corte” – nome dado a pocilgas situadas junto às casas, sendo a matança desses porcos “exemplo supremo de festa lúdica”. Fazia-se “o cozido da matança” com carnes frescas ou salgadas (rabo, orelha, barbela, focinho), além de enchidos (chouriço, linguiça, cacholeira e farinheira), de porco morto no ano anterior. Do porco tudo se aproveita. Mas o porco vem mudando, com o tempo. O de hoje é “light”. Tem menos gordura, mais músculo e mais carne no lombo (a mais apreciada). Por meio de cruzamentos e mudanças na dieta, perdeu cerca de 30% de sua gordura primitiva, 14% de calorias e 10% de colesterol, julgo saber. Como se não bastasse, o porco também fornece órgãos para serem transplantados no homem, tendo as suas válvulas para implante no coração melhor qualidade e mais aceitação que as de material sintético. Com tantas qualidades, já se vê o quanto de injustiça há na fama que têm os porcos na nossa cultura. Talvez pensando nessa injustiça, em sua defesa veio o estadista inglês Winston Churchill. É dele a observação, generosa, de que “cães olham para si de baixo para cima. Os gatos olham para si de cima para baixo. Só os porcos olham para si olho no olho, como iguais”. Apesar de tantos arroubos, um dos seus pratos preferidos era precisamente porco.
Gustave Gousteau, in Jornal Beirão, 2009
Os dias contados do porco
Gustave está de volta para falar aos seus fiéis leitores dos dias contados do porco, por estarmos em época de fazer tremer qualquer porco que se preze. E vai lembrar-vos a história da Quinta do Solar que era, por fora, igual a tantas outras de Inglaterra. Mas os animais, ali, sonhavam viver livres da exploração dos homens. Guiados por um porco, o Velho Major, expulsaram de lá o bêbado Sr. Jones, seu proprietário e criaram naquela quinta, que agora se chamava “dos Animais”, um novo regime – o Animalismo. Em que era proibido matar outros animais, andar sobre duas pernas, usar roupas e beber álcool. Não haveria mais propriedade privada, todos os animais seriam iguais, os frutos do trabalho repartidos fraternalmente e as decisões tomadas em assembleias, sem privilégios. Assim foi até que outro porco, Napoleão, assumiu a administração da quinta. Passando logo a mentir, a trair e a ter outros vícios humanos. Já não sendo mais possível “distinguir quem era homem e quem era porco”. Não foi por acaso que Orwell em “A Revolução dos Animais” (“Animal's Farm”), escolheu um porco para liderar os outros animais, nessa revolução. Por lhe sobrar esperteza e malícia. Assim foi desde o princípio dos tempos, quando sobreviviam em florestas de sobreiros e azinheiras. Eram mais ferozes e mais robustos, presas afiadas, visão pouco precisa, audição e olfacto bem desenvolvidos. “Sanglier”, nome francês do javali, vem do latim “singularis”, que significa, precisamente, solitário. Foi dos primeiros animais a serem domesticados pelo homem. Depois da ovelha, do cão e da cabra; mas antes da vaca, do burro, do cavalo e do dromedário. A primeira receita conhecida vem da China (500 a.C.) – porco recheado de tâmaras, envolvido em palha misturada com argila; assado em buraco com brasas, coberto com terra. Os dias contados do porco são marcados por amores e desamores. Até nos textos sagrados. O Levítico (11, 2 a 8) ensinava aos judeus que entre todos os animais da terra podiam comer todo o animal que tivesse a unha fendida e o casco dividido e que ruminasse. Mas não podiam comer aqueles que só ruminavam ou só tivessem a unha fendida... como o porco que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina. Na Grécia, é citado por quase todos os pensadores. Homero refere-se, na Odisseia, a Circe, que transforma os companheiros de Ulisses em porcos. Hércules enfrenta o javali de Erimateia. E Teseu, a porca de Crommyon. Na idade média a carne de maior prestígio, em toda a Europa, era a de porco. Além de saborosa, essa carne definia, nos tempos da inquisição, cristãos (os que a tinham à mesa) e judeus (proibidos desse consumo). Porcos eram engordados com restos de comidas, na “corte” – nome dado a pocilgas situadas junto às casas, sendo a matança desses porcos “exemplo supremo de festa lúdica”. Fazia-se “o cozido da matança” com carnes frescas ou salgadas (rabo, orelha, barbela, focinho), além de enchidos (chouriço, linguiça, cacholeira e farinheira), de porco morto no ano anterior. Do porco tudo se aproveita. Mas o porco vem mudando, com o tempo. O de hoje é “light”. Tem menos gordura, mais músculo e mais carne no lombo (a mais apreciada). Por meio de cruzamentos e mudanças na dieta, perdeu cerca de 30% de sua gordura primitiva, 14% de calorias e 10% de colesterol, julgo saber. Como se não bastasse, o porco também fornece órgãos para serem transplantados no homem, tendo as suas válvulas para implante no coração melhor qualidade e mais aceitação que as de material sintético. Com tantas qualidades, já se vê o quanto de injustiça há na fama que têm os porcos na nossa cultura. Talvez pensando nessa injustiça, em sua defesa veio o estadista inglês Winston Churchill. É dele a observação, generosa, de que “cães olham para si de baixo para cima. Os gatos olham para si de cima para baixo. Só os porcos olham para si olho no olho, como iguais”. Apesar de tantos arroubos, um dos seus pratos preferidos era precisamente porco.
Gustave Gousteau, in Jornal Beirão, 2009
domingo, 4 de abril de 2010
Pedaços de Linguagem
Pedaços de Linguagem
Ana Oliveira
A Linguagem da Alice, do Chapeleiro Maluco e do Coelho Branco
Sendo usualmente retratado como um homem baixo, com uma cartola grande e uma carta na faixa que o envolve, o Chapeleiro surge numa parte em que ele e a Lebre de Março (uma lebre falante) convidam Alice para beber chá. Ele é ainda lembrado por um personagem baseado nele que aparece na Banda Desenhada de Batman chamado Jervis Tetch, mas que adopta o nome de Chapeleiro Louco (Mad Hatter). O livro é uma viagem. Numa linguagem fácil e descontraída, nada é nonsense! Aquelas metáforas dão vazão à criança que sempre existirá dentro de nós, mesmo que nos transformemos numa carcaça ambulante que vai morrer, não quer morrer – resiste.Fica claro mais do que nunca que o melhor escape é sonhar! Quem perder essa capacidade, já era e nem percebeu! Sonhos malucos ou não, que sejam concretos! Viver é brincar com a imaginação, tornar um dia entediante num gozo puro! E é sonhando que a história de Alice começa e é assim que a de todos nós deve continuar.
O livro pode ser interpretado de várias maneiras. Uma das interpretações diz que a história representa a adolescência, com uma entrada súbita e inesperada (a queda na toca do coelho, iniciando a aventura), além das diversas mudanças de tamanho e a confusão que isso causa em Alice, ao ponto de ela dizer que não sabe mais quem é após tantas transformações (o que se identifica com a psicologia adolescente). Também é possível dizer que a obra faz referências a questões de lógica e à matemática, matéria que Carroll leccionava. Um exemplo é o debate que Alice faz com o Chapeleiro e a Lebre de Março sobre relações inversas (o Chapeleiro argumenta que ver o que se come não é o mesmo que comer o que se vê). Carroll também faz referências à língua francesa, como no capítulo 2, onde Alice se comunica com um camundongo em francês, perguntando "Où est ma chatte?" ("onde está a minha gata"), o que o deixa assustado. Além disso, no capítulo 4, um criado do Coelho Branco diz que estava a cavar maçãs, uma provável referência à expressão que significa "batata" em francês, "pomme de terre"; a tradução literal dessa expressão é "maçã da terra".
O nonsense de Carroll continha um elemento extra na formação do texto: a matemática. A obra de Carroll foi constituída através de jogos de linguagem, baseados na Lógica, nos quais os capítulos só terminam quando as proposições se esgotam. Carroll usou os seus conhecimentos matemáticos e lógicos para construir proposições em Alice no País da Maravilhas, sendo muitas vezes o significado particular da frase superado pela forma, sugerindo brincadeiras comuns da época.
A análise do sumário da obra, observando os títulos dos capítulos, permite ver uma colagem de histórias, casos curtos que poderiam existir independentemente, se não fosse a intenção do autor escrever um verdadeiro conto de fadas, tornando a viagem pelo país das maravilhas um sonho de Alice, e fazendo a correspondência ao episódio inicial em que ela lê um livro enfadonho antes de cair no sono. A Lagoa de Lágrimas, Um Chá Maluco e O Campo de Críquet da Rainha são capítulos que remetem o leitor a cenas muito visuais, seja pela descrição nada usual dos acontecimentos ou pelo inusitado dos diálogos. A concordância entre o início e o final aparece como uma prova de coerência na construção da narrativa, pois os leitores não exigem uma lógica total dos acontecimentos dentro do romance, uma vez que se trata do enredo de um sonho, universo onde as coisas mais incomuns são aceites como naturais.
Em toda a história de Alice são encontrados 24 poemas, entre os quais 10 são paródias de poemas e canções inglesas da época de Lewis Carroll. “Os poemas e os versos que Alice recita, e que parecem não ter sentido nenhum, são sátiras aos poemas enfadonhos que as crianças inglesas daquela época tinham que saber de cor.” A posição de Alice, de mãos unidas, ao fazer
récitas indica que era exigido das crianças da época saber as lições de cor.
O dia do chá maluco não é uma data qualquer, é o dia do aniversário de Alice Liddell, 4 de Maio. Ninguém diria a uma menina vitoriana que o seu cabelo estava comprido demais. A observação “o seu cabelo está a precisar de um corte” dita pelo Chapeleiro Louco, na verdade, era uma frase muito ouvida por Carroll, pois este usava os cabelos mais longos do que era costume. A parte na qual a Lebre de Março e o Chapeleiro Louco tentam enfiar o Caxinguelê no bule de chá pode estar relacionada com o facto de que crianças vitorianas costumavam ter ratinhos como bichos de estimação e conservavam-nos dentro de bules cheios de capim ou feno.
A Lebre de Março refere-se ao mês do cio das lebres; o Chapeleiro é louco por causa de uma substância alucinogénea usada na fabricação de chapéus; o Leirão dorme muito por ser um animal que hiberna no inverno e a Falsa Tartaruga refere-se à sopa de falsa tartaruga, que na verdade é feita com carne de vitela.
Durante uma conversa com a duquesa, Alice fica indecisa entre classificar mostarda como animal, mineral ou vegetal. Trata-se de uma referência ao popular jogo de salão vitoriano “animal, vegetal, mineral”, em que os jogadores tentavam adivinhar o que alguém tinha em mente. As primeiras perguntas feitas eram tradicionalmente: É um animal? É um
vegetal? É um mineral? As respostas tinham de ser sim ou não, e o objectivo era adivinhar correctamente em 20 perguntas ou menos. Devido às semelhanças no comprimento dos nomes, e às posições das vogais, consoantes e letras duplas no último nome, acredita-se que Charles tenha se inspirado na formação do nome de Alice Liddell para criar o seu pseudónimo Lewis Carroll. Para fazer uma adaptação não muito distante da obra literária original, apenas a apropriação do tema não é suficiente; é também necessário resgatar o trabalho com a linguagem característica do texto em questão. Quando a época em que tal obra foi escrita e a época em qual a adaptação é lançada diferem muito, essa captação da linguagem se torna algo extremamente trabalhoso, se não impossível. Afinal, a mentalidade e a ideologia dos leitores já vai ser totalmente diferente. E, já que a isso se soma o facto de que os países envolvidos são diferentes, fazer uma adaptação - diga-se, tradução - envolve variações culturais bruscas, dificultando ainda mais o entendimento dos leitores.
Com "Alice no País das Maravilhas", a situação não é muito diferente - na verdade, é até mais difícil, já que os complexos simbolismos de Carroll estão directamente ligados à cultura inglesa do século XIX. Isso acarreta uma perda cultural nas traduções. O livro de Carroll é marcado por jogos entre os sons semelhantes de palavras diferentes e os significados captados pelos personagens, o que gera ruídos na comunicação. Para passar a português trechos contendo esses jogos, as edições brasileiras fizeram a tradução com base na ideia de que a relevância está nessa brincadeira, nos seus sons, e não no significado do signo. Ainda assim, fazer a tradução dessas palavras mostra-se um árduo trabalho. Um dos trechos em que os tradutores devem ter sentido essa dificuldade é o de quando o Gato pergunta a Alice o que havia acontecido ao filho da Duquesa e a menina responde que ele virara um porco (“pig”, em inglês). Algum tempo depois, ele retorna e pergunta se ela havia dito “porco ou corvo”. Na versão inglesa, a palavra de som semelhante a “pig” utilizada é “fig” (que seria "figo" em português). Os signos “corvo” e “figo” nada têm de semelhante, mas foi a solução encontrada pelos tradutores para que o não entendimento do Gato diante da fala da garota e o jogo de palavras de Carroll sejam captados pelos leitores. Há também os casos em que o trecho original remete não só a um jogo de palavras e sons, mas também a um sentido que alude a um significado específico. Na tradução, esse sentido muitas vezes perde-se, pois apenas o jogo foi considerado.
Compare as versões:
Versão em inglês
‘...I hadn’t begun my tea – not above a week or so – and what with the bread-and-butter getting so thin – and the twinkling of the tea – ’
‘The twinkling of what?’ said the King.
‘It began with the tea,’ the Hatter replied.
‘Off course twinkling begins with a T’
Tradução literal
‘Eu não tinha começado o meu chá – não mais que uma semana – e com o pão com a manteiga ficando finos – e o cintilar do chá –’
‘O cintilar de quê?’ disse o Rei.
‘Começou com o chá,’ replicou o Chapeleiro.
‘É claro que cintilar começa com um T’”
Tradução do Livro ‘e nem tinha começado a tomar o meu chá...há não mais que uma semana, mais ou menos...e o pão com manteiga ficando cada ve mais fino...e o chacoalhar do chá...'
‘O chachoalhar do quê?' disse o Rei.
‘Começou com o chá', respondeu o Chapeleiro.
‘Claro que chacoalhar começa com chá!"
Na tradução feita, a brincadeira com as palavras é mantida, mas não o sentido do trecho. O Chapeleiro, ao afirmar o "cintilar do chá", referia-se à canção mencionada por ele mais cedo, durante a cena do chá maluco. Ele referia-se ao cintilar da "bandeja de chá" ("tea-tray", em inglês), quando foi cortado pelo Rei, que confundiu o som de "tea" com o da a letra "T".
In Jornal Beirão 3/10
Ana Oliveira
A Linguagem da Alice, do Chapeleiro Maluco e do Coelho Branco
Sendo usualmente retratado como um homem baixo, com uma cartola grande e uma carta na faixa que o envolve, o Chapeleiro surge numa parte em que ele e a Lebre de Março (uma lebre falante) convidam Alice para beber chá. Ele é ainda lembrado por um personagem baseado nele que aparece na Banda Desenhada de Batman chamado Jervis Tetch, mas que adopta o nome de Chapeleiro Louco (Mad Hatter). O livro é uma viagem. Numa linguagem fácil e descontraída, nada é nonsense! Aquelas metáforas dão vazão à criança que sempre existirá dentro de nós, mesmo que nos transformemos numa carcaça ambulante que vai morrer, não quer morrer – resiste.Fica claro mais do que nunca que o melhor escape é sonhar! Quem perder essa capacidade, já era e nem percebeu! Sonhos malucos ou não, que sejam concretos! Viver é brincar com a imaginação, tornar um dia entediante num gozo puro! E é sonhando que a história de Alice começa e é assim que a de todos nós deve continuar.
O livro pode ser interpretado de várias maneiras. Uma das interpretações diz que a história representa a adolescência, com uma entrada súbita e inesperada (a queda na toca do coelho, iniciando a aventura), além das diversas mudanças de tamanho e a confusão que isso causa em Alice, ao ponto de ela dizer que não sabe mais quem é após tantas transformações (o que se identifica com a psicologia adolescente). Também é possível dizer que a obra faz referências a questões de lógica e à matemática, matéria que Carroll leccionava. Um exemplo é o debate que Alice faz com o Chapeleiro e a Lebre de Março sobre relações inversas (o Chapeleiro argumenta que ver o que se come não é o mesmo que comer o que se vê). Carroll também faz referências à língua francesa, como no capítulo 2, onde Alice se comunica com um camundongo em francês, perguntando "Où est ma chatte?" ("onde está a minha gata"), o que o deixa assustado. Além disso, no capítulo 4, um criado do Coelho Branco diz que estava a cavar maçãs, uma provável referência à expressão que significa "batata" em francês, "pomme de terre"; a tradução literal dessa expressão é "maçã da terra".
O nonsense de Carroll continha um elemento extra na formação do texto: a matemática. A obra de Carroll foi constituída através de jogos de linguagem, baseados na Lógica, nos quais os capítulos só terminam quando as proposições se esgotam. Carroll usou os seus conhecimentos matemáticos e lógicos para construir proposições em Alice no País da Maravilhas, sendo muitas vezes o significado particular da frase superado pela forma, sugerindo brincadeiras comuns da época.
A análise do sumário da obra, observando os títulos dos capítulos, permite ver uma colagem de histórias, casos curtos que poderiam existir independentemente, se não fosse a intenção do autor escrever um verdadeiro conto de fadas, tornando a viagem pelo país das maravilhas um sonho de Alice, e fazendo a correspondência ao episódio inicial em que ela lê um livro enfadonho antes de cair no sono. A Lagoa de Lágrimas, Um Chá Maluco e O Campo de Críquet da Rainha são capítulos que remetem o leitor a cenas muito visuais, seja pela descrição nada usual dos acontecimentos ou pelo inusitado dos diálogos. A concordância entre o início e o final aparece como uma prova de coerência na construção da narrativa, pois os leitores não exigem uma lógica total dos acontecimentos dentro do romance, uma vez que se trata do enredo de um sonho, universo onde as coisas mais incomuns são aceites como naturais.
Em toda a história de Alice são encontrados 24 poemas, entre os quais 10 são paródias de poemas e canções inglesas da época de Lewis Carroll. “Os poemas e os versos que Alice recita, e que parecem não ter sentido nenhum, são sátiras aos poemas enfadonhos que as crianças inglesas daquela época tinham que saber de cor.” A posição de Alice, de mãos unidas, ao fazer
récitas indica que era exigido das crianças da época saber as lições de cor.
O dia do chá maluco não é uma data qualquer, é o dia do aniversário de Alice Liddell, 4 de Maio. Ninguém diria a uma menina vitoriana que o seu cabelo estava comprido demais. A observação “o seu cabelo está a precisar de um corte” dita pelo Chapeleiro Louco, na verdade, era uma frase muito ouvida por Carroll, pois este usava os cabelos mais longos do que era costume. A parte na qual a Lebre de Março e o Chapeleiro Louco tentam enfiar o Caxinguelê no bule de chá pode estar relacionada com o facto de que crianças vitorianas costumavam ter ratinhos como bichos de estimação e conservavam-nos dentro de bules cheios de capim ou feno.
A Lebre de Março refere-se ao mês do cio das lebres; o Chapeleiro é louco por causa de uma substância alucinogénea usada na fabricação de chapéus; o Leirão dorme muito por ser um animal que hiberna no inverno e a Falsa Tartaruga refere-se à sopa de falsa tartaruga, que na verdade é feita com carne de vitela.
Durante uma conversa com a duquesa, Alice fica indecisa entre classificar mostarda como animal, mineral ou vegetal. Trata-se de uma referência ao popular jogo de salão vitoriano “animal, vegetal, mineral”, em que os jogadores tentavam adivinhar o que alguém tinha em mente. As primeiras perguntas feitas eram tradicionalmente: É um animal? É um
vegetal? É um mineral? As respostas tinham de ser sim ou não, e o objectivo era adivinhar correctamente em 20 perguntas ou menos. Devido às semelhanças no comprimento dos nomes, e às posições das vogais, consoantes e letras duplas no último nome, acredita-se que Charles tenha se inspirado na formação do nome de Alice Liddell para criar o seu pseudónimo Lewis Carroll. Para fazer uma adaptação não muito distante da obra literária original, apenas a apropriação do tema não é suficiente; é também necessário resgatar o trabalho com a linguagem característica do texto em questão. Quando a época em que tal obra foi escrita e a época em qual a adaptação é lançada diferem muito, essa captação da linguagem se torna algo extremamente trabalhoso, se não impossível. Afinal, a mentalidade e a ideologia dos leitores já vai ser totalmente diferente. E, já que a isso se soma o facto de que os países envolvidos são diferentes, fazer uma adaptação - diga-se, tradução - envolve variações culturais bruscas, dificultando ainda mais o entendimento dos leitores.
Com "Alice no País das Maravilhas", a situação não é muito diferente - na verdade, é até mais difícil, já que os complexos simbolismos de Carroll estão directamente ligados à cultura inglesa do século XIX. Isso acarreta uma perda cultural nas traduções. O livro de Carroll é marcado por jogos entre os sons semelhantes de palavras diferentes e os significados captados pelos personagens, o que gera ruídos na comunicação. Para passar a português trechos contendo esses jogos, as edições brasileiras fizeram a tradução com base na ideia de que a relevância está nessa brincadeira, nos seus sons, e não no significado do signo. Ainda assim, fazer a tradução dessas palavras mostra-se um árduo trabalho. Um dos trechos em que os tradutores devem ter sentido essa dificuldade é o de quando o Gato pergunta a Alice o que havia acontecido ao filho da Duquesa e a menina responde que ele virara um porco (“pig”, em inglês). Algum tempo depois, ele retorna e pergunta se ela havia dito “porco ou corvo”. Na versão inglesa, a palavra de som semelhante a “pig” utilizada é “fig” (que seria "figo" em português). Os signos “corvo” e “figo” nada têm de semelhante, mas foi a solução encontrada pelos tradutores para que o não entendimento do Gato diante da fala da garota e o jogo de palavras de Carroll sejam captados pelos leitores. Há também os casos em que o trecho original remete não só a um jogo de palavras e sons, mas também a um sentido que alude a um significado específico. Na tradução, esse sentido muitas vezes perde-se, pois apenas o jogo foi considerado.
Compare as versões:
Versão em inglês
‘...I hadn’t begun my tea – not above a week or so – and what with the bread-and-butter getting so thin – and the twinkling of the tea – ’
‘The twinkling of what?’ said the King.
‘It began with the tea,’ the Hatter replied.
‘Off course twinkling begins with a T’
Tradução literal
‘Eu não tinha começado o meu chá – não mais que uma semana – e com o pão com a manteiga ficando finos – e o cintilar do chá –’
‘O cintilar de quê?’ disse o Rei.
‘Começou com o chá,’ replicou o Chapeleiro.
‘É claro que cintilar começa com um T’”
Tradução do Livro ‘e nem tinha começado a tomar o meu chá...há não mais que uma semana, mais ou menos...e o pão com manteiga ficando cada ve mais fino...e o chacoalhar do chá...'
‘O chachoalhar do quê?' disse o Rei.
‘Começou com o chá', respondeu o Chapeleiro.
‘Claro que chacoalhar começa com chá!"
Na tradução feita, a brincadeira com as palavras é mantida, mas não o sentido do trecho. O Chapeleiro, ao afirmar o "cintilar do chá", referia-se à canção mencionada por ele mais cedo, durante a cena do chá maluco. Ele referia-se ao cintilar da "bandeja de chá" ("tea-tray", em inglês), quando foi cortado pelo Rei, que confundiu o som de "tea" com o da a letra "T".
In Jornal Beirão 3/10
O melhor do mundo são as crianças
O Melhor do Mundo são as Crianças…
No mundo de hoje, a abertura e a tolerância são o mote presente em todas as circunstâncias. Aceitam-se as uniões de facto e os casamentos homossexuais, mas não há dose de tolerância suficiente para nos fazer compreender a pedofilia fora do âmbito da patologia. Muito se tem falado deste fenómeno que mancha a sociedade a propósito de casos que aconteceram na Suíça e, de há cinco anos a esta parte, bem mais perto de nós, na Casa Pia. De vez em quando, surge a notícia de que este ou aquele professor foi acusado de seduzir alunos. No entanto, mais arrepiante, ainda, é a onda de escândalos de pedofilia que tem vindo a afectar a igreja católica em países como a Irlanda, a Holanda, a Alemanha, a Áustria, a Espanha e os Estados Unidos e que tem estado na origem de debates sobre as repercussões do celibato e da abstinência sexual nos sacerdotes, tradição milenar que o Vaticano continua a defender de modo ferrenho, argumentando que a maioria dos casos de abuso acontece dentro da família e não em meios religiosos, por isso tal posição não passa de uma instrumentalização das recentes denúncias de pedofilia.
A gravidade das suspeitas levantadas, que também envolvem a alegada conivência do papa Bento XVI, obriga a um esclarecimento convincente e urgente por parte da Igreja sem qualquer tentativa de escopo na fragilidade de um líder de 83 anos que já não consegue acompanhar um acto religioso sem o recurso ao “papamóvel”. Uma religião, seja ela qual for, usufrui de um papel importante nas sociedades, em geral, e no indivíduo, em particular, enquanto veículo de transmissão e de garantia da preservação de determinados valores, mas usar da boa fé dos seguidores para exercer actos que negam os princípios mais elementares é uma política desastrosa, na medida em que derruba qualquer alicerce, independentemente da força da sua sedimentação. O triste episódio “Murphy” passado com crianças surdas e outros que já fazem lista por muitos lados, incluindo também nomes portugueses, estão a movimentar grupos de católicos que pretendem questionar o papa, exigindo dele, no pleno desempenho do instituído estatuto de representante de Deus na Terra, uma tomada de posição firme e disciplinadora, mas, sobretudo, dissuasora de repetições e recidivas. Ignorar que se vive a pior crise do pontificado de Ratzinger não será a melhor solução; todavia encetar um processo de vitimização traduzir-se-á, seguramente, numa estratégia errada, já que o slogan “caça às bruxas” faz-nos lembrar acontecimentos passados que pouco abonam a favor da Madre Igreja.
É imperioso que as famílias católicas consigam reatar a confiança nos membros do clero, sob pena de ser irremediável a perda de fiéis que, cada vez mais, escasseiam nas cerimónias dominicais. Muita da fé perdeu-se devido a algum fundamentalismo temperado com posições retrógradas e desfasadas das realidades sociais, mas provar-se que padres e bispos foram protagonistas em actos de pedofilia e mereceram o silêncio por parte dos seus responsáveis hierárquicos poderá ser a machadada decisiva na grande congregação dos católicos do mundo. Nunca nos esqueçamos de que estamos a reportar-nos a países ditos desenvolvidos e não a países de um mundo, tantas vezes olhado como menor, em que as crenças ditam, por exemplo, que estabelecer relações sexuais com bebés, por serem crianças sem mácula, pode curar a SIDA.
Pugnemos todos, ultrapassando as diferenças de qualquer ordem, por vivermos num espaço social que se coadune com as sábias palavras pessoanas, sempre actuais, “grande é a poesia, a bondade e as danças…/ mas o melhor do mundo são as crianças…”
Teresa Adão, in Jornal Beirão, 3/10
No mundo de hoje, a abertura e a tolerância são o mote presente em todas as circunstâncias. Aceitam-se as uniões de facto e os casamentos homossexuais, mas não há dose de tolerância suficiente para nos fazer compreender a pedofilia fora do âmbito da patologia. Muito se tem falado deste fenómeno que mancha a sociedade a propósito de casos que aconteceram na Suíça e, de há cinco anos a esta parte, bem mais perto de nós, na Casa Pia. De vez em quando, surge a notícia de que este ou aquele professor foi acusado de seduzir alunos. No entanto, mais arrepiante, ainda, é a onda de escândalos de pedofilia que tem vindo a afectar a igreja católica em países como a Irlanda, a Holanda, a Alemanha, a Áustria, a Espanha e os Estados Unidos e que tem estado na origem de debates sobre as repercussões do celibato e da abstinência sexual nos sacerdotes, tradição milenar que o Vaticano continua a defender de modo ferrenho, argumentando que a maioria dos casos de abuso acontece dentro da família e não em meios religiosos, por isso tal posição não passa de uma instrumentalização das recentes denúncias de pedofilia.
A gravidade das suspeitas levantadas, que também envolvem a alegada conivência do papa Bento XVI, obriga a um esclarecimento convincente e urgente por parte da Igreja sem qualquer tentativa de escopo na fragilidade de um líder de 83 anos que já não consegue acompanhar um acto religioso sem o recurso ao “papamóvel”. Uma religião, seja ela qual for, usufrui de um papel importante nas sociedades, em geral, e no indivíduo, em particular, enquanto veículo de transmissão e de garantia da preservação de determinados valores, mas usar da boa fé dos seguidores para exercer actos que negam os princípios mais elementares é uma política desastrosa, na medida em que derruba qualquer alicerce, independentemente da força da sua sedimentação. O triste episódio “Murphy” passado com crianças surdas e outros que já fazem lista por muitos lados, incluindo também nomes portugueses, estão a movimentar grupos de católicos que pretendem questionar o papa, exigindo dele, no pleno desempenho do instituído estatuto de representante de Deus na Terra, uma tomada de posição firme e disciplinadora, mas, sobretudo, dissuasora de repetições e recidivas. Ignorar que se vive a pior crise do pontificado de Ratzinger não será a melhor solução; todavia encetar um processo de vitimização traduzir-se-á, seguramente, numa estratégia errada, já que o slogan “caça às bruxas” faz-nos lembrar acontecimentos passados que pouco abonam a favor da Madre Igreja.
É imperioso que as famílias católicas consigam reatar a confiança nos membros do clero, sob pena de ser irremediável a perda de fiéis que, cada vez mais, escasseiam nas cerimónias dominicais. Muita da fé perdeu-se devido a algum fundamentalismo temperado com posições retrógradas e desfasadas das realidades sociais, mas provar-se que padres e bispos foram protagonistas em actos de pedofilia e mereceram o silêncio por parte dos seus responsáveis hierárquicos poderá ser a machadada decisiva na grande congregação dos católicos do mundo. Nunca nos esqueçamos de que estamos a reportar-nos a países ditos desenvolvidos e não a países de um mundo, tantas vezes olhado como menor, em que as crenças ditam, por exemplo, que estabelecer relações sexuais com bebés, por serem crianças sem mácula, pode curar a SIDA.
Pugnemos todos, ultrapassando as diferenças de qualquer ordem, por vivermos num espaço social que se coadune com as sábias palavras pessoanas, sempre actuais, “grande é a poesia, a bondade e as danças…/ mas o melhor do mundo são as crianças…”
Teresa Adão, in Jornal Beirão, 3/10
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